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Perco-me entre textos, poesias e músicas, percebi então que a melhor forma de arquivar era dividir. Nesses anos, muito do que não se perdeu foi graças a quem acompanha meu trabalho. Assim, na imensidão virtual deixo essas pegadas, parecem dois únicos pés, mas acreditem, carrego muito de vocês aqui.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Se eu não fosse estúpido, queria ser Diógenes

Já fui abordado tantas vezes por mendigos que penso ser difícil alguém nunca tê-lo sido. Eu poderia dizer moradores de rua, mas nem sei se todos esses moram realmente na rua – além  do mais, acho legal a palavra mendigo, a interpreto como “um sábio desconhecido”.
Há quem se esquive desses caras maltrapilhos que vagueiam transportando sua sujeira e seu silêncio pelas ruas noturnas que nós mal conhecemos. Pode ser um reflexo medonho da realidade, uma percepção a qual queremos evitar sobre o tanto em comum que temos com aqueles seres tão desprezados pelas massas.
Quem já parou para conversar com um cabeludo de cobertor nas costas sabe que as doses de loucura são geralmente bem menores do que as de lucidez. Isso é um choque danado: notar a tão tênue linha que separa as condições sociais. Você fala com esse cara por 5 minutos e só encontra justificativas para ele ter acabado nessa; falando por 10 minutos surge um contraste entre a sapiência e demência total; agora, se você conversar com ele por 1 hora, logo, você se tornará um igual, ouvirá suas histórias e irá se deparar com o mendigo que existe dentro de você mesmo – de todos nós.
Não sei bem por que entrei nesse assunto, talvez seja a influência dos livros de Diógenes, alguns dos quais eu estava relendo há algumas semanas. O Diógenes em questão era um mendigo que vagava pelas ruas de Atenas, morava em um barril – sim, ele inspirou a residência do personagem Chaves – e era sempre visto portando uma lamparina sobre o argumento de que a usava como luz para encontrar um raro homem ainda honesto. Esse vagante constantemente chamado de cão era, na verdade, um antigo discípulo do filósofo Antístenes, o qual fora pupilo de Sócrates. Diógenes acreditava que o possuir era a destruição do homem e por isso teria abdicado de qualquer bem. Também desprezava a opinião pública de uma sociedade corrupta e sem valores.
Há uma história bastante conhecida sobre um encontro de Diógenes com o então e já todo poderoso Alexandre, o Grande. Dizem que certa vez Alexandre parou de frente ao judiado homem que tomava sol. Sem perceber que havia tapado a luz, indagou: “Diga-me, homem, o que posso te dar”. Diógenes respondeu-lhe: “Não me tires o que não podes dar!”
Um homem comum teria visto desrespeito em tal resposta, mas Alexandre não era um homem comum e, enquanto pessoas do povo e os próprios guardas de Alexandre riam daquele velho homem, ele disse: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”. Todos se calaram.
Vejo uma beleza ímpar em tal citação. Ela demonstra a percepção de um homem que tinha tudo, mas que sabia na verdade não possuir nada. O poder era a âncora que prendia Alexandre à mediocridade dos que, assim como mendigos – só que sem a alma –, ficam a vagar bajulando aqueles que podem lhe garantir disfarces para a pobreza interior.
Pode parecer ilógico pensar isso, mas talvez esses que andem por aí como se fossem invisíveis, visto como loucos, sintam muito menos o peso do mundo do que nós. Sou livre? Por quê? Por poder escolher a cor da embalagem de maionese? Por possuir alguns papéis na carteira que me dão o direito de entrar em uma loja? Eu não faço ideia de qual seja o nome da última atendente que me recebeu e me vendeu algo – e olha que ela não se vestia nem cheirava como um mendigo.
Não podemos combater a pobreza com Bolsa-família ou moedas no semáforo. Não se engane com o que os olhos lhe permitem ver: a miséria é interna e todo nosso esforço para escondê-la não faz com que ao fim do dia ela ainda não esteja lá.