...

Perco-me entre textos, poesias e músicas, percebi então que a melhor forma de arquivar era dividir. Nesses anos, muito do que não se perdeu foi graças a quem acompanha meu trabalho. Assim, na imensidão virtual deixo essas pegadas, parecem dois únicos pés, mas acreditem, carrego muito de vocês aqui.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Sobre gente que já nasce velha

Nesta semana, assistia a um monólogo do brilhante historiador gaúcho Leandro Karnal e, entre tudo de interessante que ele sempre tem a dizer, uma parte em específico chamou a minha atenção: 
“Quanto mais eu envelheço, mais eu tenho medo; quanto mais eu tenho medo, mais eu tenho consciência do mundo. Enquanto eu, velho, demorava a entrar numa piscina de profundidade desconhecida, meu sobrinho, de dezoito anos, se atirou sem pensar duas vezes. A consciência nos torna covardes. Hoje, eu jamais  viajo sem um hotel reservado. Um jovem nunca sai com um guarda-chuva. Já eu, levo óculos extra, casacos, remédios e, quanto mais eu envelheço, mais coisas carrego ao sair de casa. O que significa isso? Eu percebo que a vida tem riscos. Ou seja: quanto menos eu soubesse dos riscos do mundo, melhor eu viveria”.
E agora, o principal: “O que fazer com o fato de que eu sei que, enquanto os outros gritam, no dia 31 de dezembro: ‘Feliz ano novo’, eu digo: ‘Vai ser um ano igual a todos, só que ficarei mais velho e um ano mais próximo da morte’. Como dizer isso sem estragar a festa dos outros? Enquanto eles cantam ‘este ano, quero paz no meu coração, quem quiser ser um amigo, que me dê a mão’, eu penso que cada vez terei menos amigos, porque eles estão morrendo ou se afastando. A ignorância é uma benção”.
Tenho um amigo que sempre diz que sou uma alma velha, pois somente uma alma velha poderia escrever do jeito que escrevo. Detalhe: esse amigo já passou dos 70 anos.
Talvez eu esteja finalmente começando a compreender por que detesto aniversários a ponto de esconder o meu e me sentir realmente estranho diante de qualquer um que me parabenize. Natal? Ano-novo? Queria poder fingir que sinto algo. Até já tentei buscar isso, mas a verdade é que não sinto absolutamente nada de diferente. Isso me gerava inquietação e certo constrangimento, mas, diante de textos de Skakespeare e de outros tantos gênios, encontro uma zona de conforto para o que até então era desconforto. Hoje, estou percebendo que não se trata de tristeza. Eu apenas acordei antes, nasci velho e perceptivo – não ao nível magnífico do personagem Hamlet, mas ao nível do Felipe Sandrin, velho.
Ninguém quer olhar-se no verdadeiro espelho, pois lá habita o rosto da Medusa. Quando encaramos a verdade do que somos, petrificamos, ficamos para sempre de frente para aquele espelho, acontece o despertar maldito. Porém, vivos, ano após ano, a imagem embaçada começa a recuperar os movimentos, até que um dia percebemos que já não tememos como ontem e amanhã, temeremos menos. O que ocorre dali por diante é incrível e revigorante, fazendo-nos sentir vivos todos os dias. Só por isso já vale o desprezo às datas comemorativas, pois sinto viver todos os dias, logo, eu não preciso dos específicos.
Melancólico? Sim. Aparentemente triste? Para outros, talvez. Porém, não se pode fugir da verdade indubitável que é viver. Eu não mais temo a solidão, aliás, eu me completo nela e, por precisar cada vez menos de outros, mais me sinto bem na presença daqueles dos quais tenho certeza de que quero estar perto. Não desprezo mais companhias, pois eu não aceito mais qualquer pessoa próxima a mim. Não preciso agradar ninguém que eu não queira e, a cada ano, melhoro meu sono e meu humor irônico. 
Sinto tornar-me senhor do meu tempo, eu não cultivo a frase: “um dia, você pode precisar daquela pessoa”, pois não venderei sorrisos por interesse futuro. Enquanto qualquer um ao longe reflete se eu sou triste, dentro de mim, reverberam risos, pois vejo a vida como comédia e, no meu palco, o espetáculo ocorre todos os dias.
Sim, eu já me sinto velho aos 29 anos, mas, parafraseando o bobo da corte, eu digo: melhor ficar sábio antes de ser velho, do que velho sem ser sábio.
Texto escrito originalmente para Jornal SerraNossa

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

E se fosse o dilúvio, valeria a pena se salvar?

Pela janela do ônibus, vejo um grande muro, imponente, mas sem grande beleza. Suas pichações e tinta com aspecto envelhecido contrastam com o resto da cidade. Era uma das minhas primeiras vezes em Porto Alegre. Questionei o senhor que sentava ao meu lado sobre a serventia daquela atípica obra: “É o Muro da Mauá. Hoje, não serve para nada”, respondeu.
Saciado parcialmente da curiosidade, me vali daquela afirmação como criança que confia demasiadamente em adultos que, no fundo, sustentam argumentos também infantis. Aquele muro, afinal, separava o Lago Guaíba (ou, chamem de rio) do centro de Porto Alegre. Com o assunto das chuvas e cheias nas principais pautas, me questiono sobre aquele senhor e sua destruidora ignorância. Certamente, ele não sabia que, em 1941, a grande enchente deixou um quarto da população da capital desabrigada.
Assim surgiu o Muro da Mauá, após um dos capítulos mais trágicos do Rio Grande do Sul. Ao longo de 30 anos, o imponente muro de três metros de altura e 2,6 mil metros de extensão ergueu-se de forma silenciosa e esquecida. Hoje, 38 anos após a última grande cheia, o “inútil” muro presta seu serviço à população. Mais do que separar Porto Alegre das águas, essa obra nos lembra que quem não conhece a história está fadado ao lento definhamento.
A natureza é silenciosa, mas se repete. Independente de nós, ela tem sua vida própria, acontece. Para nós, cinquenta, cem anos parecem tanto. Porém, para ela, o tempo nada significa.
O homem garantiu sua sobrevivência no momento em que entendeu a importância de retransmitir o que aprendeu. Afinal, como poderíamos não precisar reiniciar tudo a cada nova geração? Os desenhos, a fala e as escrituras. O ser humano repassando tudo o que aprendeu. Mas, neste mundo prático, retransmitir parece algo a se tornar banal: não é!
Essa memória contraproducente que o brasileiro alimenta é o que tem nos fadado a escolhermos líderes cada vez piores, a seguirmos ideias cada vez mais medíocres e nos apoiarmos sobre mentalidades infantis. Imaginemos que, naquele dia, no meu lugar, estivesse outra criança, um futuro empreendedor, alguém do ramo de construção, talvez. Imaginemos aquela criança a ouvir o senhor dizer que o tal muro era inútil. Imaginem essa mesma criança 30 anos depois, arquitetando um projeto que destruísse o mesmo Muro da Mauá.
História é desinteressante, filosofia não serve para nada. Skakespeare, Kant, Nelson Rodrigues, o muro pichado pelo qual eu passo todos os dias. Por que eu deveria estudar qualquer dessas coisas que aparentemente não me trazem nada?
Este sacrilégio do não pensamento sempre me leva a uma questão: se aos seres humanos cabe o diferencial do raciocínio, em comparação a outras espécies, cabe chamarmos alguém que não pensa de humano?
Por fim, aquele senhor acabou me ensinando algo através de sua ignorância. Eu aprendi com ele que, em nossas mentes, existem mais muros inúteis a nos cercar do que na cidade.
Use sabiamente seu poder de pensar ou, alguém, através das palavras, erguerá em ti barreiras intransponíveis.

domingo, 11 de outubro de 2015

Onde morre a criança e nasce o adulto frustrado



Buscava algo especial para esse Dia das Crianças, mas sei que essa é uma das datas mais difíceis de entender, afinal, surge em nós uma confusão de reais motivos sobre por que deveríamos festejá-la. Para que tem filhos, fica mais fácil: basta voltar a energia a eles para fazê-los notar a importância dessa fase. Mas, ainda assim, quanto desta comemoração não é simplesmente nossa e apenas mais um relembrar nostálgico? Não que seja ruim, mas o que, de fato, devemos passar adiante nesse dia? E, mais do que isso, o que podemos fazer pelas crianças?


Nessa busca por um texto que acrescentasse algo a vocês, revisitei minha infância – e não me refiro às lembranças. O fato é que o texto que quero passar a vocês não está na internet, ou seja, precisarei transcrevê-lo letra por letra aqui, assim como na minha infância. O que não era encontrado na biblioteca pública deveria ser inventado com muita perícia para que passasse pelo crivo dos professores. Bom, mas o que aqui retransmitirei não é inventado, está em um grande livro de Osho e, para mim, representa a grande sintonia sobre nossas funções para com as crianças.

“As crianças não estão perdidas, e nós insistimos em ensiná-las. E todo o nosso ensinamento vai se tornar uma barreira para a vida, por que a vida precisa de uma mente ampla, aberta de todos os lados. E, para ensinar, você precisa de uma mente estreita – concentração, atenção, não percepção. Pois a percepção é uma mente fluindo simultaneamente em todas as direções. Você ouve o caminhão passar na rua. Você ouve os pássaros. Nada fica excluído e nada é desvio de atenção. Todas as coisas existem ao mesmo tempo. Eu vou falando; os pássaros não são perturbados. Os pássaros continuam cantando; porque eu deveria ser perturbado?... Mas o ensinamento depende de concentração. A concentração significa envenenar a criança. A concentração significa estreitar o ser da criança. Apenas uma pequena passagem ficará aberta e todo o resto será fechado. Só um buraquinho, ao qual você chama de concentração, permanecerá aberto, e esse vasto céu estará fechado... todas as portas e janelas. Sente-se perto da fechadura e fique olhando por ela – isso é concentração. Pense nisso: uma criança pequena sentada por seis horas, forçada a se sentar num banco duro, sem permissão de se mexer. Mas a energia se mexe, a energia é viva. Uma criança viva não pode se sentar em silêncio por muito tempo. Ela quer pular, correr e fazer milhões de coisas. Ela transborda de energia. E nós a obrigamos a sentar”.

Então, chegamos ao ponto chave do texto: ‘Se você quer ser mais eficiente, menos percepção é uma coisa boa, pois um mecanismo é mais eficiente que um homem. Um mecanismo simplesmente repete. Logo, todo esforço dispendido pela sociedade é para reduzir a criança a um mecanismo eficiente. E de repente, um dia, você percebe estar sentindo falta de tudo. Você viveu, no entanto, não pode dizer que viveu. Você amou, mas não consegue sentir que o amor aconteceu com você. Você não sentiu a fragrância de estar vivo”.

Sei que quando lemos uma fala tão profunda, ela nos parece utópica: “se criarmos nossos filhos assim, como eles vão sobreviver neste mundo?”, pensamos. Só por nos questionarmos desta forma, notamos o quanto o texto de Osho é preciso em suas colocações. Nós estamos criando as crianças para sobreviverem na guerra que irá colocar umas contra as outras.

Caminhar para a eficiência é tornar-se máquina e, claro, quanto mais máquinas somos, menos questionamos, menos hesitamos na hora de passar por cima de outras pessoas.


Neste Dia das Crianças, compre um presente para você mesmo. Dê-se algumas horas pensando sobre onde morre a criança e nasce o adulto frustrado. É um ótimo presente... para o mundo.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Certo ou errado?

Muitos pensadores convergiam para o equilíbrio como sendo o grande norteador da vida humana. A noção de equilíbrio passou, então, a ser precedida pelo autocontrole, um inibidor consciente para vontades teoricamente inconscientes. Tais equivalências podem ser percebidas de forma mais concreta em questões simples: como ou não como? Posso ou não dar aquela “engordadinha” básica? Porém, as grandes questões, aquelas que realmente fazem diferença, são vistas apenas pelos mais auspiciosos, os aprimorados.
Se esse primeiro parágrafo pareceu complicado, não se preocupe: era para ser mesmo. O fato é que a gangorra de viver está sempre presente – perder de um lado e ganhar de outro. Mas como determinar o ganhar e perder quando o meio soa mais saudável?
Em 2011, iniciei uma série de palestras em escolas: diversas cidades, alunos de várias idades, escolas públicas e particulares. Foi ótimo, aprendi muito. Mas, diante das palestras que ministrei neste ano, já percebo a diferença de percepção que desenvolvi nesses quatro anos, diferenças essas que remetem justamente ao fato de que ganhar é perder e perder é ganhar. Tudo é equivalente.
Vou citar um exemplo recente. Dois dias na estrada, quatro palestras, duas escolas particulares e outras duas públicas. No primeiro dia, as particulares. Chego meia hora antes, as crianças já estão prontas, padronizadas em roupas e no silêncio que a disciplina apresenta. Começo a palestra, todos atentos, os professores sentam tranquilos entre seus alunos. Percebo que eles absorvem o que digo e sinto-me dignificado. Aplausos, agradecimentos e em fila e todos voltam às suas respectivas atividades.
Chega a vez das escolas públicas. Chego uma hora antes, pois tudo que tem “pública” no nome requer mais planejamento. As crianças começam a chegar, algumas suadas, a maioria delas gritando. Brigam pelo lugar, a professora aparta e faz o sinal da cruz. As meninas sentam na frente, os bagunceiros lá atrás – e atrás deles somente os professores, prontos a chamarem a atenção com a naturalidade de quem faz isso o dia todo. Eu falo, alguns escutam, outros não estão entendendo nada, alguns tentam bagunçar: mas eu gosto de bagunça – se deixar eu faço também e que se dane a palestra. Eles aproveitam e eu também. O plano muda, mas ninguém sai entediado. Bem-vindo à escola pública.
Agora, a grande questão. O que é melhor e pior? A disciplina é ótima, eu gosto de ser escutado, sequestrar as atenções. Na escola particular é o que ocorre, o padrão vence, a didática disciplinar cumpre seu papel e não há imprevistos. Já na escola pública, aquela bagunça não me deixa extrair o meu melhor para eles, acabo pulando conteúdos e percebo que o entendimento é bem mais complicado. Porém, há um fato nítido sempre presente nesses casos: quanto mais disciplina, menos criatividade.
Doutrinamos as crianças dizendo prepará-las para a vida, mas a história mostra que essa disciplina é apenas apoiada no princípio da aristocracia, ou seja, em algum momento lá na Grécia antiga, os pensadores mais influentes concluíram que o mundo era formado por raros capacitados intelectualmente e por outra grande maioria de medíocres. As escolas, então, tinham essa definição: separar os bons dos ruins, para que os bons governassem com uma ideia mais clara de justiça a qual beneficiaria ambos.
Esse é o ambiente em que crescemos. O primeiro grande contato com o mundo é através da escola. Mas essa matemática das equivalências não pode ser ensinada: ela precisa ser percebida de uma maneira muito individual. Pois, assim como a disciplina destrói a criatividade, o não disciplinar corrompe a liberdade futura de toda uma sociedade. É um jogo difícil para o qual em dois mil anos ninguém encontrou a resposta.
Por isso sempre aconselho: não acredite cegamente no que você acredita, pois a chance de estar errado é infinitamente maior do que a de estar certo. Esse é o primeiro papel que a escola exerce em nossas vidas: influenciar para que nos enganemos não influenciáveis.

Minha opinião sobre tua opinião

“E aí, Felipe, qual a sua opinião sobre a redução da maioridade penal?” Sinceramente? Não sei. Em tempos em que todos precisam opinar sobre tudo, soa quase que imoral admitir não saber. Mas veja bem, meu “não sei” não é infundado. Eu busquei, juro que me esforcei para fixar uma opinião, mas a verdade é que, quanto mais me abasteço de dados a respeito desse tema, mais me distancio de uma conclusão sobre o “menos pior”. Talvez seja o “não acredito que chegamos a esse ponto” que barre uma conclusão final... 
Temos que ter opinião sobre tudo? Não posso me conformar em opinar sobre amor, morte e madeiras que compõem violões? Aliás, todos precisam fingir saber sobre tudo? Isso não parece meio como “cuspir para cima”? Se todos podem e devem opinar sobre tudo, e se no geral a grande maioria é medíocre em pensamento, então não estaríamos fomentando a opinião pública estúpida? 
Quer me ver buscando saída de uma opinião minha? Basta um “banana” concordar comigo. Você não estranha isso? Quando pessoas que você acha “bananas” concordam contigo? Se não acha, talvez sua opinião seja somente a busca por qualquer aprovação. Ao mesmo tempo, quantas pessoas mais inteligentes, instruídas e até geniais discordam de você? Isso não seria o suficiente para ao menos você restaurar conceitos que, por algum motivo, em algum tempo você rompeu?
Eu não acredito em Deus, aliás, eu também não acredito que alguém possa me provar que ele não exista. Sou assim: mais agnóstico que ateu; mas todos são ateus com os deuses dos outros, ou você acredita em um deus com cabeça de elefante, um com braços de serpente e também naquele que fuma um cachimbo? Reafirmo: todos são ateus para com algum Deus que não o seu. Mas enfim, eu me declarei não crente em Deus para enfatizar que sou apaixonado pelas obras de Santo Agostinho. Agora pergunto ao cristão mais fervoroso: quais obras de Santo Agostinho você já leu? É possível que eu, um agnóstico, conheça e admire um bispo mais do que você, um aficionado cristão? É possível também que eu simplesmente passe por cima da opinião de um gênio como Santo Agostinho acreditando que sou mais sábio que ele?
Percebe a presunção quem percebe a genialidade, e acredite, há muitos gênios que já passaram por aqui. Muitos mesmo. Sabe essas coisas que frustram você? Elas são discutidas, pensadas e teorizadas há mais de quatro mil anos. Sabem aquelas feministas fervorosas que pensam ser essa a hora de mudar o mundo? Peça a elas sobre Aristófanes. Se a resposta for algo tipo: “quem?”, já recomendo que não perca seu tempo discutindo sobre a cobra que engole o próprio rabo. A não ser que seja um daqueles dias bons para se queimar o tempo falando sobre coisa alguma. 
Essa coluna ficou um tanto filosófica, não é? Sei que tem quem gosta. Aos que não entenderam muito o objetivo, por favor, não se culpem, nem me culpem: esse espaço bate nas teclas da vida, mas o que sabemos da vida?
Então, da próxima vez que alguém lhe pedir uma opinião sobre a matança de joaninhas em Trinidad e Tobago que tal dizer apenas um “não sei”?
A propósito: Aristófanes foi um filósofo que, em 392 a.C, escreveu uma peça teatral chamada “As Mulheres na Assembleia”. Sim, há quase 2.500 anos, um homem já protestava pelo que algumas mulheres chamam hoje de “o direito da nova mulher”.
Tá, mas reconsiderando o que escrevi agora há pouco: contra a matança de joaninhas eu sou contra.

O crime compensa

Quanto vale uma vida? Para a maioria dos que governam nosso país, não deve valer nada. É fácil se esconder atrás da palavra burocracia quando o assunto diz respeito aos descasos para com cidadãos de bem que pagam seus impostos, educam seus filhos, respeitam e se sacrificam para cumprir as leis – mesmo as mais absurdas. “Não depende só de nós” dizem aqueles que se elegeram prometendo soluções.
Sempre que estou na estrada, lembro-me de amigos e conhecidos que morreram por culpa desses que governam. Bastaria uma lombada, uma faixa de segurança, a sinalização bem feita e lá uma vida teria sido preservada. Sim, que fosse uma única vida, ainda assim não teria valido a pena?
Os bons estão sendo punidos neste país. Vemos esses malditos proporem leis que isentam criminosos de pagarem transporte público, vemos dinheiro sendo dado a pessoas que roubaram e mataram. Detentos não podem trabalhar, pois são protegidos pelo sistema. Nesta semana mesmo tentei apurar o número de foragidos em Bento Gonçalves e a resposta me foi negada. Suspeito que sejam mais de mil criminosos com mandados de prisão abertos e que estão livres entre nós.
Há empresas fechando por conta de dívidas mínimas para com o Estado, famílias perdendo o sustento por conta da mão de ferro com que o governo trata os empresários de bem que lutam para manterem funcionando o legado de suas famílias. Já deixou de ser somente revoltante para se tornar uma bomba-relógio.
Ninguém que tenha uma mínima instrução ainda acredita neste país. Todo investimento que deveria ter sido feito duas décadas atrás não aconteceu. Ao olharmos para o presente, vemos uma situação não somente caótica, mas também imutável. A cada geração vemos menos pessoas capazes de fazer alguma real diferença.
É indescritível a sensação de abandono pela qual o povo passa. As ditas cidades ricas e bem desenvolvidas da Serra veem ano após ano o afundar de qualquer espírito de comunidade que um dia existiu por aqui. Cercas cada vez mais altas, buracos cada vez mais profundos, onde deveria existir a segurança pública abriram malocas e pontos para venda de droga. A qualidade de vida está horrível, ninguém mais se arrisca a ir a praças, estabelecimentos operam apenas com seguranças armados.
Fragilizaram a população e soltaram os bandidos. Os altos impostos servem apenas para sustentar a escória. A mensagem é clara: estamos sozinhos. Fomos abandonados e somos massacrados todos os dias. Os números, os fatos e o nosso sentimento não mentem: vivemos na latrina do mundo, sendo presididos por uma ignorante que não merece nenhum respeito e representados pelas piores espécies de seres humanos.
Deixam-nos morrer nas estradas. Matam o futuro do país nas escolas e, enquanto vivemos na insegurança, os prefeitos, vereadores, deputados e senadores blindam seus carros e constroem suas casas em condomínios fechados.
Não há mais lei que proteja as pessoas de bem, nem leis que amenizem a dor dos que já perderam alguém para o descaso desses bandidos bem vestidos.
No Brasil, o crime compensa.

sábado, 27 de junho de 2015

O homem olhando as estrelas

Faça o que fizer, fuja o quanto puder, mas um dia você se pegará lendo o horóscopo.  O que isso prova eu não sei. Talvez que você seja humano?! Até o mais cético dos mortais já olhou para as linhas que desenham a palma da mão; mesmo o mais descrente ser humano já tentou captar seu número da sorte. Nossa eterna busca por sentido.
Lembro que, ainda criança, uma tal mãe Dinah ganhou as mídias por prever  - segundo ela – que um avião iria cair. Quando os integrantes da banda Mamonas Assassinas morreram na queda de seu avião, a Dinah obviamente não perdeu tempo e tratou de ganhar dinheiro. Contam que até 2014, ano em que morreu, a “vidente” viveu do sucesso de sua trágica “previsão”. Nem vou entrar muito no assunto do dito dom divino de prever. O que me interessa mais nesse tipo de caso é o consolo de boa parte das pessoas diante da clarividência, a qual nos ligaria a algo divino e, por sua vez, nos remete à ideia de que não estamos sozinhos nesse imenso nada cósmico. 
É de nossa natureza acreditar, é nossa muleta sentimental crer em algo que transcenda o homem e seu controle. Por vezes me vejo olhando as estrelas, buscando a constelação de escorpião, vendo se planetas vagueiam por entre “minhas estrelas” e tentando imaginar se o que ocorre lá em cima influencia o que esteja a ocorrer comigo aqui. Logo, me vejo na busca de tentar descrever minha fase atual: como se toda fase fosse nova e a vida não fosse esse eterno inverno que todo ano chega.
Das previsões que me surpreendem, tenho uma em especial, do magnífico filósofo Blaise Pascal, ainda no século 18: “O futuro será dominado por lazer, juventude e barulho”. Ao contrário da maioria das previsões, essa não foi feita olhando a borra do café, jogando cartas ou vendo a posição das conchinhas do mar em cima de pedaços de palha. Pascal era um grande estudioso, um homem que guiou sua vida pelo conhecimento. Sua tacada certeira quanto a essa previsão se baseou nos medos que o ser humano dito moderno começa a desenvolver já naquela época.
Lazer, prazer, uma busca desenfreada pela felicidade momentânea e um momentâneo que precisa ser contínuo. Eis um retrato perfeito dos nossos últimos cem anos: o lazer como a necessidade de ser feliz; a juventude como negação da velhice em um mundo que gasta cem vezes mais em pesquisas estéticas do que para desenvolver curas para o câncer; e a compulsão por manter-se jovem. Já o barulho não é somente na forma de som, mas no sentido de estarmos a todo o momento envoltos por coisas que nos distraem. A verdade é que não suportamos qualquer ideia de solidão do convívio com nós mesmos e nossos atormentadores pensamentos.
Somos guiados misticamente, acreditamos no acaso como a criança que segura a mão do adulto para atravessar a rua sem que precise ela mesma olhar para os lados. Talvez seja essa submissão ao divino que nos permita deitar a cabeça no travesseiro e dormir, mesmo diante as terríveis atrocidades que seguimos a assistir durante os séculos.
A genialidade da sobrevivência, a fuga das mais dolorosas perturbações. A engenhosidade de nossa mente não tem limites, ela faz de um céu noturno um olhar de esperança, faz ecoar dentro de nós o brilho longínquo das estrelas como tivessem sido feitas para nós – feito mariposas a circularem a lâmpada.
Lazer, juventude e barulho. Entre tudo isso nós, à espera do socorro que nunca chega. Crianças perante os séculos em um eterno medo de crescer.

Quando um cara gosta, ele simplesmente faz

Viver é estar no altar do sacrifício, apaixonar-se é intensificar o sentido da vida. Mas qual o sentido da vida? Exato, pergunto o mesmo: qual o sentido de se apaixonar, de amar? Neste imenso oceano de pensamentos que tange existir, talvez o amor – sempre temo usar essa palavra – seja a forma que encontramos para caber em uma caixa menor. Vamos em direção ao outro por não cabermos em nós. E se amar é viver, também aceitamos o sacrifício de morar em outro.
Eu já passei horas em frente a prédios, sem saber se ela poderia descer, sabendo que, se ela conseguisse dar uma escapadinha, no máximo teríamos tempo para uns poucos beijos e abraços. Eu perdi a conta de quantas vezes subi morros correndo, ofegante, lutando contra o tempo. Tudo porque ela havia dito que precisava me ver “agora”.
Por minhas primeiras paixões juntei moedas para poder comprar algum presente qualquer que, de tão suado, acabava por cumprir seu objetivo: arrancar um lindo sorriso.
Já machuquei os joelhos para poder acompanhá-la no “projeto verão”, fui para lugares que odiava, conheci pessoas que não me acrescentaram nada. Já usei roupas que ela dizia que ficariam legais, encarei situações de perigo, abri milhares de portas para ela entrar e tranquei outras para não deixar que ela saísse. Eu vaguei por cidades escuras e as vi se tornarem pequenas pelo simples fato de ela estar no banco do carona.
O que aprendi com tudo isso? Que quando um cara gosta, ele faz. Ele encara o ônibus, as horas de viagem, as olheiras e as pernas cansadas. Quando ele gosta de verdade, ele não se importa se ela está sem maquiagem – aliás, ele pode até ter ciúmes que ela fique de rosto limpo em frente aos outros: ele quer a sensação de saber como ela acorda só para ele.
Bem, eu não estou junto de nenhuma dessas pessoas de quem tanto gostei e pelas quais tanto fiz. Talvez alguns se questionem se valeu a pena, mas eu tenho certeza que sim. Como casal, demos certo o quanto era para dar. Graças a elas o tempo congelou naqueles momentos. São minhas pequenas eternidades, memórias que não envelhecem e ensinam o poder da presença e despedida.
Eu abri mão de outras coisas, entreguei meu tempo e, em troca, elas me deram o delas.  Em algum lugar desse tempo, tudo parou, nós permanecemos. Por isso que, quando um homem quer, ele luta e faz, ele sabe o preço do “para sempre”, sabe que em uma mulher cabe a sensação dos segundos mais incríveis de sua vida.
Relacionamentos começam e acabam todos os dias, mas será que um romance realmente tem fim? Quantos pedacinhos de outros cabem em nós mesmos quando nos despedimos daquela pessoa que esteve ao nosso lado, que compartilhou seus medos e alegrias? A saudade é a herança dos que recordam e recordar é deixar que soprem os ventos que nos conduzem para o próximo porto. Somos navegantes, mas também somos a parada. 
A paixão é essa combustão instantânea, uma fagulha que incendeia o motor da vida. Um homem de verdade aprende isso, ele entende que para o amor e a vida há também os sacrifícios. Logo, este homem pode ter se tornado mais duro e arredio. Mas ele não traz desculpas: quando ele realmente gosta, ele simplesmente faz.

A liberdade para ser e se frustrar

Somos um arquétipo do ser humano moderno, livres. Somos o presente que o passado esperou nascer. O que existia antes de nós era medieval, antiquado. É tão presente essa ideia de mundo novo que deixamos de nos importar com quando ele realmente iniciou. Sim, pois ideias de liberdade, princípios de felicidade e buscas não surgem alheias ao homem em seus primeiros passos, elas são aprendidas.
Somos a geração ciência, que não acredita em coisas doentias nas quais os antigos acreditavam. Sim, somos livres: para escolher a roupa e corte de cabelo, a marca de água que iremos beber e a proteção de tela do nosso celular. Temos a liberdade sexual, o poder da escolha dos parceiros. Somos livres, lutamos por isso e acreditávamos que a liberdade era um dos pilares da busca fundamental – fosse ela qual fosse. Porém, não contávamos com a liberdade do outro, liberdade essa que nos leva também a sermos ou não escolhidos. Fomos, então, de encontro à solidão.
Olhamos os jovens de hoje e pensamos: “Eles estão indo muito rápido”. Mas não foi assim que planejamos as próximas gerações? Não nos orgulhamos de ver uma criança de seis anos dominando a tecnologia que faz um senhor de 60 ficar totalmente perdido? E esse medo da velhice: será que o que nos atormenta é a finitude ou a sensação de estarmos ficando ultrapassados, prestes a sermos tragados pelo passado, servindo, no máximo, de referência aos futuros?
Tento não confundir minha sensação de obsolescência com alguma ilusão sobre um futuro perdido pelo fato de eu simplesmente não estar nele. E daí se tudo está andando rápido demais? O que, afinal, é moral? Um casal ficar por 50 anos junto sem se amar é certo? E jovens dizendo “te amo” na mesma semana em que se conhecem é errado?
Talvez a essência humana não tenha mudado tanto quanto pensemos. Quem sabe até sejamos os mesmos de sempre, buscando as mesmas respostas e sabendo que, mesmo se essas surgissem, não nos bastariam. É o jeito que a roda gira, a cada década do seu jeito, nem melhor ou pior, apenas mutável superficialmente e apenas o suficiente para parecer que não estamos parando ou mesmo que estamos tentando mais que outros.
Já depositamos nossa fé em moiras, as três velhas que teciam o destino dos homens. Já acreditamos em um Deus segurando raios, em um com asas nas botas e outro que controlava as ondas do mar. Já endeusamos uma teoria, absorvemos as escritas incríveis de Platão e dela inventamos o cristianismo. Já endeusamos homens, uns bons, outros maus – vide Hitler e a população de um país que o seguiu para exterminar outros. Já escravizamos nossa gente e acreditamos que, por uma mera questão de cor, alguns não pertenciam à espécie humana. No século 17 passamos a acreditar na ciência e razão, capengamos essa ideia por 300 anos. E agora, no que cremos? Na lei da atração – se pensarmos positivamente o universo conspira por nós? Que somos sagrados por sermos feito da poeira de estrelas? Em meio a tudo isso, apenas uma coisa é realmente concreta: o ser humano implora e se apoia em qualquer sentimento que o faça parecer menos banal.
Sempre que penso em passado, presente e futuro me ocorre uma sensação de que seguimos caminhando como os primeiros de nossa espécie: em meio a um deserto, sem noção de para onde ir e o que procurar; sem bem saber de onde viemos ou mesmo se vale a pena seguir.
Discursamos sobre liberdade, mas o que é ser livre? Falamos complexamente sobre felicidade, amor e autoconhecimento, mas somos tão rasos em conteúdo que qualquer pessoa com um pouco mais de sapiência já nos deixa sem entender nada. Falamos em futuro perdido como se alguma vez nossa espécie tivesse se encontrando nesse inóspito lugar chamado “eu”.
Esses somos nós, livres?! Para sofrer talvez.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Silêncio e asfalto

Colorido, escuro. Colorido, escuro... E assim segue. Meus olhos estão fechados, mas não basta para que a luz que foge entre as frestas da janela não me incomode. Meu ombro direito cansou daquela posição, mas para a esquerda fico de frente a essa janela que parece se movimentar ao ritmo do letreiro instalado a alguns metros do hotel onde estou hospedado. Decido então aceitar o sono que não chega, ligo a TV: nada de suficiente passa nos canais. Sobre a cama ao lado, apenas o violão em seu estojo surrado, ferido e cansado pelos compartimentos de bagagens.

Lembro e penso nas épocas de banda, os dias na estrada. Os quartos de hotéis já foram mais barulhentos, algumas mulheres, algumas bebidas, alguns companheiros de estrada. Saudade? Nada. Passou – como tudo na vida passa – e hoje, saudoso, penso ter durado somente o tempo que deveria.
Lembro e penso – agora um pouco menos – nos meus relacionamentos, em ex-namoradas. Saudade? Certamente! Saudade boa, das diferenças, dos aconchegos e risadas divididas. Volto, então, para o quarto de hotel. A luz do letreiro lá fora segue piscando e me incomodando, assim como me incomodaram antigos relacionamentos. Nesse comparativo, eu aceito aquela luz, a contemplo silenciosamente repetindo em pensamento: um dia você sentirá saudade dessa noite em que a luz lhe rouba o sono.
Bem verdade sei que não é a luz que me impede de dormir, mas os anseios. Às 6h preciso estar de pé, três palestras no mesmo dia para públicos distintos: crianças pela manhã, adolescentes durante a tarde e adultos à noite: Acredite, são os adultos que mais me preocupam. Enfim, tem coisa pior do que precisar dormir e não conseguir? Na vida, tudo que se precisa fazer se torna aflitivo e deixa aquele gosto de precipitado. Imagine-se em um balcão de bar. Um amigo lhe aponta o canto onde está uma garota e lhe diz: “É por aquela que você precisa se apaixonar”. Isso não funciona, nada que se precise funciona, pois tudo de mais mágico na vida independe.
Penso em fumar um cigarro naquele quarto escuro, mas – peraí – eu não fumo. Talvez um gole de uísque... Ah é, eu também não bebo. Sobrou tocar o violão. Mas e se nos quartos ao lado outros estiverem dormindo? Que canalhice esse lance de vícios: os destruidores são silenciosos, os saudáveis atrapalham outros.
Já são 3h. Desço as escadas daquele hotel à beira da estrada. Lá embaixo, além das cores do tal letreiro luminoso, algumas lâmpadas fluorescentes acesas. Fico observando as borboletas por alguns segundos, em seguida meu olhar corre ao longe. Observo os caminhões, todos alinhados, cortinas fechadas. Passo a lembrar do meu avô, que por anos teve como lar as estradas, e dos momentos em que eu o acompanhei, quando pequeno.
Esqueço que estou longe de casa. Eu moro em minhas lembranças, meu principal alimento são os pensamentos. Não me importo mais em não dormir, talvez eu fique acordado até às 6h e apenas dobre a dose de cafeína para aguentar o dia cheio.
Subo ao quarto agraciado pelas lembranças. A solidão sempre foi a minha mais sincera companheira. Deito com o violão sobre mim e, mesmo não podendo tocá-lo, desenho algumas notas com os dedos. Sem perceber, adormeço.
A vida é assim: quando nos livramos das obrigações, nenhuma luz atrapalha e adormecemos tranquilos. Da noite anterior restaram lembranças. Em breve estarei cercado por aqueles de quem gosto e por alguns momentos ficarei em silêncio. Eles não sabem, mas é assim que os agradeço.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Dance nos ventos da mudança

Dia após dia, visito o passado. Não há como ser o que somos sem levar adiante o que já fomos. Esbarro em textos antigos e vejo que a prática me fez evoluir: é um processo normal, não é mesmo? Treinos que nos aprimoram. Engraçado é quando esbarro em elogios dados por outros a esses antigos textos. Aí surge a dúvida: tornei-me complexo ou complexado?
Soa estranho para quem vivencia a ideia de já ter sido melhor em algo – ou, no mínimo, mais claro. Talvez antigamente as pessoas me entendessem melhor. E o mesmo vale para os textos. Em tempos em que meu vocabulário era mais limitado, meus pensamentos menos inquietos, meus desejos mais indefinidos e minha tristeza menos retocada, eu talvez fosse mais direto.
Evoluir é deixar muita coisa para trás, inclusive partes de você. É doloroso o viver, pois todos os dias – mesmo que imperceptivelmente – nós nos despedimos de algo. Você nunca sentiu isso em dias em que é invadido por um vazio sem motivos aparentes?
Tente resgatar a memória mais antiga do seu primeiro quarto, aquele em que você passou parte de sua infância. Relembre as cores da parede, as falhas na pintura, tente recordar o teto que você observou por tantas noites antes de dormir, o chão em que durante a noite você pisava quando levantava para ir tomar água. Conseguiu recordar? Essa lembrança não surge triste, não é mesmo? Mas você se imagina tendo seguido a morar nesse quarto até hoje e pelo resto da sua vida? O que ocorre dentro de nós é algo bem parecido: esse vazio que nos seca por dentro como se fôssemos rachar é nada além do que o gosto das mudanças. Logo haverá um novo chão, um novo teto, uma nova cor e novos móveis. Nada melhor ou pior, apenas necessário.
É no inverno que as raízes mais se aprofundam e ganham força. Aquela árvore cheia de vida que contemplamos na primavera não foi moldada por dias amenos de verão: foram as mudanças que sacramentaram sua seiva. Uma árvore não reclama das estações que a maltratam, das folhas que dela se desprendem ou mesmo das cordas de balanços que nela se amarram. Uma árvore seca as partes mortas e deixa os galhos secos irem ao chão, pois sabe que logo estes galhos irão se decompor e se reintegrarem ao solo que a sustenta.
Nós podemos gritar, chorar, sofrer enquanto tentamos segurar algo que, cedo ou tarde, o vento levará. Diferente de uma árvore, a nós cabe a sensação de que tudo podemos controlar. Mas quanto sofrimento recai sobre os que tentam impedir a mudança das estações? Como poderíamos comtemplar a luz do sol tocando nossa pele sem termos passado pelo gélido inverno? Como veríamos a beleza das folhas secas de plátano a dançarem no ar se não fosse o outono derrubá-las?
Não nos cabe impedir a mudança. Podemos, sim, lutar contra ela, mas tudo que conseguiremos será prolongar o sofrimento. Ser forte também é ceder aos ventos do norte. É isso que a vida faz: ela se renova e, mesmo o que nos parece pertencer, um dia irá ao chão, pois deste mesmo lugar viemos. Uma troca justa.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Já naveguei em barcos de papel

Recentemente uma empresa de softwares escondeu um prêmio dentro de seus termos de uso para aqueles que desejassem usar seus programas. Entre as cláusulas do contrato virtual uma frase avisava que o primeiro a reclamar um pagamento junto à empresa receberia mil dólares. Foram necessários mais de cinco meses para alguém se pronunciar e receber a grana ‘fácil’.
No metro de Washington, o famoso violinista americano Joshua Bell tocou durante 45 minutos seu violino Stradivarius de 1713, avaliado em US$ 3,5 milhões. Bell, que vestia cala jeans e uma camiseta simples, não despertou a atenção dos milhares que passavam por aí: todos seguiram seus caminhos sem imaginarem que, alguns dias antes, pessoas haviam pago mais de cinco mil dólares para assistirem esse mesmo Joshua Bell.
Paro observar uma garotinha e sua boneca. O brinquedo não é novo, o cabelo cheio de nós e vejo que falta uma parte da perna, mas nada que impeça a garota de saltitar feliz enquanto seus pais observam as vitrines. Questiono-me: Quanto tempo resta à boneca de rosto riscado e membros tortos? Quanto tempo levará para que a garotinha se contamine com a grandeza estapafúrdia desse mundo excêntrico dos adultos?
Ainda contemplamos um belo nascer do sol, um final de tarde de céu anilado, um inverno chuvoso sob as cobertas... Mas é tão passageiro o conforto, dura o espaço de um respirar profundo. Nada dura mais do que segundos e qualquer minuto de contemplação já nos ressoa exageradamente como perda de tempo.
Nos últimos 20 anos, nosso tempo médio em frente a TV passou de 30 minutos para 3 horas por dia. Na internet, a média brasileira é de 5 horas diárias – somos ainda os segundos colocados em acessos a vídeos e redes sociais. Mas espere, e aquela pressa toda no trânsito, aquela frase tão entoada: “não tenho tempo”. Será que realmente não o temos ou apenas usamos o tempo que temos muito mal?

Basta uma caminhada pelo centro das grandes cidades para percebermos que o brinquedo simples já não serve mais. Tornamo-nos arredios a tudo que é de graça, como se o consumo material freasse o consumir de nosso corpo durante os anos. Queremos enganar a vida não parando para conversar com ela.
Não há mais espaço para os acasos. Afinal, o que estaria fazendo um músico conceituado em uma parada de ônibus? Ou um escritor renomado a escrever frases em vitrines de lojas? Por que um pintor famoso iria expor suas telas de graça em uma praça pública? Ou mesmo, por que deixar meu filho brincar com seu brinquedo quebrado se posso comprar uma moto movida a bateria para ele?
Leva anos para aprendermos a cultuar um monte de ferro pesando 800kg que queima petróleo – em outras palavras, um carro. Leva outra década para acreditarmos que, quanto mais alto o andar, mais iremos contemplar a vista da cidade. Levam-se muitas noites mal dormidas para, enfim, crermos que acordar às 7h, tomar um café às pressas e retornar para casa às 19h, exauridos, seja a receita de uma velhice cheia de paz. Dá muito trabalho acreditar em tantas mentiras.
Por isso vivemos cansados: não é pelo dia de trabalho, o trânsito caótico, as férias que parecem tão distantes. O que nos cansa mesmo é não acreditarmos nas mentiras que nos ensinaram a repetir todos os dias. Pois, no fundo, queríamos seguir brincando com as coisas simples, olhar os bobos que contemplam vitrines e rir deles. O que dói é saber que, lá dentro, parte de nós ri do que nos tornamos.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Nada nos pertence, nada podemos exigir

“Uma árvore que cai faz muito mais barulho do que uma floresta que cresce”. E quantas árvores desabam à nossa volta todos os anos? Diante das clareiras do que não mais nos cerca, surge nosso nu espiritual, uma experiência que nos ridiculariza, mas que surge para também nos fortificar.
De onde vieram nossos inimigos? O que odiamos, repudiamos e alimentamos? Por que o fazemos? Sempre há e sempre haverá pontos de interrogação em meus textos: escondê-los seria disfarçar quem realmente sou, pois há mais dúvidas do que até mesmo água em mim.
No giro da moeda profetizamos sorte ou azar: que lado o destino escolherá e qual lado escolherei? E assim, todos os dias, nos lançamos ao ar. Reclamamos da fila do supermercado, do imprevisto no trabalho, do acaso que todos os dias nos toca o ombro e faz olharmos para trás. Raramente nos ocorre que as coisas são porque são e, se aqui ainda estamos, por que não aceitá-las?
Todo ódio contra alguém é o ódio contra si. Junto dos anos se acumulam medos. Pensar neles seria doloroso, então os reservamos ao subconsciente, fingimos esquecê-los e, sem percebemos, passamos a ser controlados por eles. Pense por um minuto na maior tristeza da sua vida, a maior dor que lhe coube. Reflita sobre a exata situação a qual foi exposto na época e toda a dor que sentiu. Agora pense: como isso me influencia hoje? Você olha para os dois lados antes de atravessar a rua? Você dorme do lado direito da cama? Come assistindo o jornal do meio-dia? Desvia o olhar dos que lhe encaram?
Um sábio foi indagado: “O que faço quando, na meditação, um demônio se aproxima?”. O sábio respondeu: “Põe o demônio a meditar contigo”. Todos têm seus demônios e traumas que se tornam imperceptíveis. Para notar o que nos tornamos precisamos nos assumir aos medos. É doloroso, mas tão necessário quanto encher nossos pulmões de ar a cada segundo. Os resultados demoram a aparecer – talvez décadas –, porém, um dia vivido na intensidade de nos sentirmos perceptíveis aos motivos de nossos prazeres e desprazeres é mais poderoso que cem anos de tormenta.
Sempre haverá uma interrogação em sua vida, a dúvida está presente mesmo em pessoas iluminadas e repletas de paz. A diferença não está em tê-las ou não, mas em como lidar com elas.
Os medos nos isolam como se todos à nossa volta soubessem lidar com os seus, como se nadássemos sós em uma imensidão de angústias. Na ânsia de não nos afogarmos, queremos ficar acima das ondas, mas somente quem se deixa submergir percebe quantos corpos nos cercam, corpos daqueles que exauriram suas forças tentando, justamente, não se afogarem. Para perceber que não estamos sós, precisamos colocar nossos demônios a meditarem, tomar fôlego e descemos à profundidade de quem realmente somos.
Quando começamos a dialogar com nossas atitudes e investigamos aquele sentimento ruim que nutrimos por alguém, quando mesmo diante da cegueira da inveja, da cobiça e de tantos outros medos passamos também a ver os motivos que nos levam a isso, passamos então a ter perspectivas da paz. É quando paramos de culpar o mundo que assumimos a responsabilidade pela moeda que dança no ar. Não se trata de sorte ou azar, se trata de uma única moeda e seus dois lados, o giro contínuo que põe amigos e inimigos, alegrias e tristezas, promessas e mentiras, tudo lado ao lado, tudo pertencente a essa moeda a qual damos o nome de vida.
É impossível passarmos por aqui sem provarmos. Alguns dançam rumo ao conhecimento, outros rastejam um labirinto de pedras. Não se trata apenas das escolhas: trata-se de reconhecer que, por mais que façamos o que nos pareça nobre, ainda assim a moeda seguirá girando. Não se trata de vencer ou perder, mas de aceitar que não somos donos de nossas vidas, não fomos nós que nos autocriamos. Estamos à mercê do que não controlamos. Nada nos pertence e nada podemos exigir. A floresta cresce em silêncio e ela é grandiosa, nossos gritos são fortes, mas não nos impedem de cair. Ouça o que o silêncio diz.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Humanidade em queda: Quanto tempo leva para cairmos na real?


Necessitamos estar certos, mas por vezes juro que não desejaria. Em uma semana escrevo sobre a depressão que a cada 40 segundos leva uma pessoa ao suicídio. Na semana seguinte, um cara decide jogar um avião cheio de histórias contra montanhas. Um ano antes aviso sobre a violência próxima a explodir em nossa pequena cidade e no ano seguinte batemos recorde de assassinatos. Eu encho a boca pra dizer que esse país não tem solução e cada vez mais pessoas concordam com meu desânimo. Todos esses acertos nada significam para mim.

Eu acredito na força do pessimismo, penso inclusive que por vezes ele seja mais poderoso que esse lance de ver um lado positivo em tudo. Aliás, desconfio dos demasiados sorridentes e suas certezas sobre o homem caminhando para a harmonia. Essa necessidade de nos vangloriarmos em espécie é uma projeção da sobrevivência, só isso. Nós nos sentimos importantes, fundamentais, o centro... Dessa forma não nos abalamos ainda mais com essa loucura que nos é esfregada na cara. Ser positivo é estacionar no amarelo do irreal.

Essa maldade intrínseca nos intimida. O acesso e a velocidade da informação nos trouxeram a dilacerante imagem dos monstros e, olha só, eles se parecem conosco. Por um segundo parei a observar o jovem de 21 anos que covardemente matou outro cravando-lhe um copo na garganta: ele parecia tão humano! Suas linhas, seus olhos, suas roupas... Poderia passar por mim diversas vezes no dia sem que eu suspeitasse da demência que lhe acompanhava. É isso que nos apavora: ver no reflexo da maldade um rosto meramente humano.

O outono está chegando, junto dele a sensação de que tudo está igual e nada vai bem. Será que o mal está vencendo? Queria sinceramente acreditar que não, queria mais uma vez estar errado, mas, quanto mais andamos, mais nos deparamos com o despreparo humano para tal caminhada. É um jogo de estica e puxa, gente derrubando gente, interesses ditando relações, conexões frágeis feito guardanapos em refrigerantes.

Tanto potencial desperdiçado. Você para a fim de observar um casal de velhinhos e pensa: que espécie incrível somos: inventamos o amor e com ele nos transformamos. Vemos um garoto brincar com seu cãozinho e sorrimos a graça das diferenças que se completam. Vemos um avião erguer-se e contemplamos nossa capacidade de aprender com os pássaros. Será que um dia apagaremos as linhas imaginárias que dividem pessoas? Será que um dia nos solidarizaremos com as vítimas de guerras que já duram dois mil anos? Será que um dia andaremos pelas ruas sem o risco de encontrar outros jogados ao frio? Seria, é, tão simples, já tivemos tanto tempo, mas nunca parecemos realmente tentar acabar com isso.

Assim se fez nossa história: de guerras, chacinas e ganância. Nossas religiões foram responsáveis por mais sofrimento do que salvação. Nossos deuses servem de desculpas para odiarmos outros. Todas as soluções se voltaram para o “eu”.

Não há desgraça que nos surpreenda e para a loucura buscamos justificativa. Como no caso do garoto morto no banheiro de uma festa: “ele deve ter feito alguma coisa”, então, diante de testemunhas que afirmam que ele não fez absolutamente nada, entendemos mais um pouco da insanidade a qual todos estamos expostos.


Um poeta cantou: “as pessoas têm medo das mudanças. Eu tenho medo que as coisas nunca mudem”. Hoje, décadas depois, canto-lhe triste em resposta: Eu também, eu também... Amém.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Se eu não fosse estúpido, queria ser Diógenes

Já fui abordado tantas vezes por mendigos que penso ser difícil alguém nunca tê-lo sido. Eu poderia dizer moradores de rua, mas nem sei se todos esses moram realmente na rua – além  do mais, acho legal a palavra mendigo, a interpreto como “um sábio desconhecido”.
Há quem se esquive desses caras maltrapilhos que vagueiam transportando sua sujeira e seu silêncio pelas ruas noturnas que nós mal conhecemos. Pode ser um reflexo medonho da realidade, uma percepção a qual queremos evitar sobre o tanto em comum que temos com aqueles seres tão desprezados pelas massas.
Quem já parou para conversar com um cabeludo de cobertor nas costas sabe que as doses de loucura são geralmente bem menores do que as de lucidez. Isso é um choque danado: notar a tão tênue linha que separa as condições sociais. Você fala com esse cara por 5 minutos e só encontra justificativas para ele ter acabado nessa; falando por 10 minutos surge um contraste entre a sapiência e demência total; agora, se você conversar com ele por 1 hora, logo, você se tornará um igual, ouvirá suas histórias e irá se deparar com o mendigo que existe dentro de você mesmo – de todos nós.
Não sei bem por que entrei nesse assunto, talvez seja a influência dos livros de Diógenes, alguns dos quais eu estava relendo há algumas semanas. O Diógenes em questão era um mendigo que vagava pelas ruas de Atenas, morava em um barril – sim, ele inspirou a residência do personagem Chaves – e era sempre visto portando uma lamparina sobre o argumento de que a usava como luz para encontrar um raro homem ainda honesto. Esse vagante constantemente chamado de cão era, na verdade, um antigo discípulo do filósofo Antístenes, o qual fora pupilo de Sócrates. Diógenes acreditava que o possuir era a destruição do homem e por isso teria abdicado de qualquer bem. Também desprezava a opinião pública de uma sociedade corrupta e sem valores.
Há uma história bastante conhecida sobre um encontro de Diógenes com o então e já todo poderoso Alexandre, o Grande. Dizem que certa vez Alexandre parou de frente ao judiado homem que tomava sol. Sem perceber que havia tapado a luz, indagou: “Diga-me, homem, o que posso te dar”. Diógenes respondeu-lhe: “Não me tires o que não podes dar!”
Um homem comum teria visto desrespeito em tal resposta, mas Alexandre não era um homem comum e, enquanto pessoas do povo e os próprios guardas de Alexandre riam daquele velho homem, ele disse: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”. Todos se calaram.
Vejo uma beleza ímpar em tal citação. Ela demonstra a percepção de um homem que tinha tudo, mas que sabia na verdade não possuir nada. O poder era a âncora que prendia Alexandre à mediocridade dos que, assim como mendigos – só que sem a alma –, ficam a vagar bajulando aqueles que podem lhe garantir disfarces para a pobreza interior.
Pode parecer ilógico pensar isso, mas talvez esses que andem por aí como se fossem invisíveis, visto como loucos, sintam muito menos o peso do mundo do que nós. Sou livre? Por quê? Por poder escolher a cor da embalagem de maionese? Por possuir alguns papéis na carteira que me dão o direito de entrar em uma loja? Eu não faço ideia de qual seja o nome da última atendente que me recebeu e me vendeu algo – e olha que ela não se vestia nem cheirava como um mendigo.
Não podemos combater a pobreza com Bolsa-família ou moedas no semáforo. Não se engane com o que os olhos lhe permitem ver: a miséria é interna e todo nosso esforço para escondê-la não faz com que ao fim do dia ela ainda não esteja lá.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O nó górdio

Conta a lenda que em 900 a.C na antiga Frígia – onde hoje fica localizada a Ásia Menor, um rei morreu sem deixar herdeiros. Os oráculos então anunciaram: “o novo rei chegará em um carro de bois”. Um camponês de nome Górdio que chegava à cidade sem pretensões foi quem acabou coroado. Em agradecimento aos deuses e para que nunca se esquecesse de onde veio, Górdio amarrou sua carroça no templo de Zeus, mas amarrou-a de tal maneira que o nó usado era dito indesatável. Assim, Górdio reinou próspero, sendo substituído somente mais tarde pelo seu filho, Midas. Midas, porém, não deixou herdeiros ao morrer e os oráculos foram novamente consultados. “Herdará toda Ásia Menor aquele que desatar o antigo nó de Górdio”, disseram. Durante 500 anos ninguém havia sido capaz de desatar o nó. Em 334 a.C, Alexandre, o Grande, ao passar pela Frígia e conhecendo a lenda do famoso nó de Górdio, decidiu ir ao templo de Zeus para ver se de fato lá existia um nó impossível de ser desfeito. Analisou por horas o emaranhado das cordas sem em nada tocar, até que sacou sua espada e simplesmente cortou o nó. Lenda ou não, Alexandre viria pouco tempo depois a se tornar rei de toda Ásia Menor.

Na Europa a expressão “cortar o nó górdio” é bastante conhecida. Ela significa, basicamente, resolver um problema da maneira mais objetiva possível.

Essa história me chamou atenção algumas madrugadas atrás, enquanto pensava nos problemas que o Brasil enfrenta e na situação limite em que nos encontramos. É bem provável que estejamos enfrentando nossa pior crise até hoje. E não me refiro à crise econômica e todos aqueles números comparativos sobre educação, índices de desenvolvimento etc., mas, sim, ao fator violência.

Um país pode ser pobre, pode ser desigual, ter pessoas passando fome e não possuir base alguma de educação, ainda assim esse país pode não ser violento. A violência não é somente um ato extremo. Antes de tudo, ela precisa existir em sua mais exacerbada forma dentro daquela pessoa, daquele grupo. A violência extrema é herdada e precisa ser praticada diariamente. Hoje, no Brasil, são raros os lugares onde, por exemplo, as pessoas podem sair de madrugada para caminhar. Aliás, você conhece algum lugar assim? Agora pense um pouco: saia do que você aprendeu a tratar como normal e pense novamente nisso: hoje, no Brasil não podemos nem sequer sair para caminhar a hora que desejarmos. Esse é o extremo da violência.

Juízes estão soltando assassinos, estupradores, pessoas cruéis que não sentem o menor remorso em matar. Juízes, pessoas estudadas, influentes e muito bem remuneradas, dizem: “Os presídios não suportam”. Vejam bem: a frase “os presídios não suportam” sucede a frase “ele estuprou e matou” e isso mostra em que situação nosso país chegou.

A morte do surfista Ricardo fez muitas pessoas repensarem o extremo em que chegamos. Ricardo não era apenas um surfista que rodava o mundo representando o Brasil, o cara era amado onde vivia, tinha projetos sociais, ajudava todos do bairro e foi assassinado cruelmente pelas mãos que nos deveriam proteger.

Vejam a situação que chegamos. Policiais podem nos matar a qualquer momento, juízes soltam assassinos estupradores. A lei está a favor dos bandidos. Para termos uma ideia, hoje o governo gasta R$ 45 mil reais por ano com cada presidiário, enquanto com um estudante das redes públicas o valor investido é de R$ 15 mil.

Meu questionamento é o seguinte: existirá alguém capaz de desfazer esse nó górdio que condena nossa liberdade ou teremos de esperar centenas de anos para que surja alguém verdadeiramente grande neste país?

Olho para cima e para os lados, tento até olhar para baixo, mas entre homens de terno e uniforme, não vejo nada além de covardes.

sábado, 24 de janeiro de 2015

À beira da extinção emocional

Há dias que a vida parece tão escassa de opções... Acordamos vendo aquela mesma parede de tantos anos, o brilho da tinta já não é o mesmo, os móveis que um dia admiramos se tornaram invisíveis. A questão aqui poderia ser a velhice, mas não: refiro-me mesmo à angustiante rotina que se acumula feito pó em ventiladores há muito tempo parados.
De fato, a estabilidade é uma busca humana. Ela se tornou primordial em épocas nas quais a escassez de alimento ameaçava nossa existência. Foi em busca da estabilidade que os homens se desenvolveram social, econômica e tecnologicamente. Foi assim ao longo de 20 mil anos que desenvolvemos a necessidade pelo saber. Controlar era sobreviver.
Podemos hoje, deitados em nossas camas observando o mundo na palma de nossas mãos, não percebermos o quanto ainda somos ligados àquelas criaturas que se reuniam ao redor de uma fogueira balbuciando descobertas. Nossa sede de sobrevivência cumpriu sua função. Sobrevivemos, mas que herança tenebrosa trazemos de tempos tão selvagens?
Essa compulsão “cavernística” pela estabilidade trouxe consigo uma necessidade que conflita com nossa forma atual de existir. O homem estável é aquele que busca, mas o homem que busca além do que compreende é o mesmo que se afunda em frustrações.
Muitos estudiosos concordam que vivemos a era mais triste de toda história humana. Imaginem que toda nossa necessidade, todo nosso avançar científico visava à sobrevivência, logo, diante da estabilidade da perpetuação, passamos a adotar um novo critério chamado felicidade. Mas se a felicidade passa a ser uma necessidade ao mesmo tempo em que não há fórmula para sermos felizes, paradoxalmente vamos em direção ao ser humano em sua tristeza constante.
Se retrocedermos cem míseros anos e pensarmos em todos aqueles relatos de como as pessoas sobreviviam, notaremos que, apesar de todas as limitações, elas viviam mais intensamente o presente: a menor expectativa de vida limitava a expectativa de futuro – algo sobre o qual não temos poder. Hoje, vemos pessoas de 20 anos planejando para quando chegarem aos 70. Desse choque entre querer o que não se sabe e planejar o que não nos pertence surge nosso modelo atual de sociedade na qual a frustração se tornou mãe da tristeza, e o pior, uma tristeza que precisa ser disfarçada, pois nos foi dito que todos podem e devem ser felizes.
Houve uma mudança no sentimento humano quanto à existência, isso é inegável. Se essa mudança pode ser a base de uma evolução benéfica ao ser humano em si? Impossível dizer. O que podemos facilmente constatar é que ainda somos inteiramente primitivos ao ponto que quanto mais podemos externamente, menos conseguimos internamente. Por exemplo: temos centenas de amigos virtuais, mas nos sentimos desconectados do mundo. Sabemos os malefícios de diversos alimentos e drogas, no entanto vivemos a doença da obesidade e uma em cada cinco pessoas é diagnosticada com depressão.
A cada 40 segundos, uma pessoa comete suicídio no mundo. Pensem um pouco nisso. Não se trata de salvar outros, mas de pararmos para refletir. Será que tanta aflição, tanta busca, tantos planos para daqui tanto tempo vão ao encontro de um sentido de viver?
Pense, sem medo, apenas pare tudo e pense. Será que sua aflição não é a obrigação em ser feliz? E seus planos, são realmente seus? E o seu hoje, ele é mesmo hoje ou se tornou um amanhã que nunca chega? Apenas pense.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Desafio sem make

Não lembro ao certo minha idade, nem lembro de ter sido avisado pelo espelho, penso então que foi o forçado convívio comigo mesmo que acabou por ocultar os fios de cabelo que caiam sem serem substituídos. Como eu estava dizendo, não lembro ao certo quando percebi estar perdendo o cabelo, provavelmente nem tenha sido eu avisado pelo espelho, mais provável tenha observado meu pai, meus avós.
E dá para fugir dessa tal genética? Lembro que um dos primeiros livros que li tentou me avisar: “O que mais odiamos em nossos parentes é sermos parecidos com estes”. Muitos devem estar se dizendo agora: “eu não sou nada parecido com aqueles idiotas”, mas quero lembrá-los que neste caso a negação é um dos primeiros sintomas do vínculo.
O ódio, aliás, tem essa particularidade, pertence à mesma moeda do gostar. Logo, se gostamos estamos há um passo de odiar e quando a odiamos talvez o que não suportemos seja o fato de termos os mesmos defeitos.
Misturei tudo, eu sei, é que esse lance de cair o cabelo me faz questionar muita coisa. Comecei a tomar medicação uns cinco anos atrás, tudo para não seguir a tradicional linhagem dos carecas da família. E sabe o que mais me deixa inquieto nisso tudo? Os cinco anos. Eu juro que parece ter sido ontem: menos mal que a medicação parece ter funcionado, pois os poucos cabelos que eu tinha na época ainda me restam, ainda.
Permita-me essa ‘conversa’ mais descontraída para confessar outro crime contra o tempo. Um ano atrás o dentista me avisou: “Tem que tirar os sisos”. Segundo ele era para ser feito logo, mas aqui estou eu e meus quatro sisos. Parando para pensar agora, acho que existe uma lógica para ainda não ter voltado ao dentista, afinal, se sou apegado a fios de cabelo, imagine aos dentes.
É, há intimidades que não podem ser contadas, talvez eu esteja indo longe de mais, mas esse lance de esconder o que todo mundo faz é um sintoma claro da máxima que se tornou a aparência.
Alguns meses atrás as garotas se desafiavam na internet a postarem fotos sem maquiagem, então a gente para para pensar: mas o normal não seria elas estarem se desafiando a postar fotos maquiadas? O fato é que ninguém mais se aceita como é. A morena quer ser loira, a de cabelo liso quer deixar crespo, o magro quer ganhar músculos e o gordo quer ser magro. E se existisse um comprimido que me desse dez centímetros de altura eu já teria tomado. O que eu ganharia com dez centímetros a mais? Nada, mas alguém em algum canal da TV certa vez me disse que altura era importante e infelizmente algo em mim acreditou.
E a gente cresce ouvindo: ‘Seja o que você é’. O pai nos leva para a escola e quer parar o carro em frente ao portão, se nós o reprovamos ele diz: “Você não tem que ter vergonha de quem é”. Mas quem se é quando se tem sete anos? Aí você assiste a um filme do super-homem e pensa: “Eu quero ser alto, forte e usar a cueca por cima da calça”. Loucura essa tal lucidez.
Mário Quintana escreveu: “Se eu amo meu semelhante? Sim, mas onde encontrar meu semelhante”. Como poderíamos aceitar e amar o próximo se não aceitamos nem a nós mesmos? Como podemos viver uma plena alegria se acreditamos que dez centímetros nos fariam mais felizes?
Simples vaidade ou ocultação? Não podemos esquecer nosso real rosto, pois maquiagem nenhuma dura para sempre.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Para cada dose de loucura duas de razão


Nunca evitei um assunto pelo medo da polémica que este poderia gerar, também, nunca escrevi um texto pensando em polemizar. Os resultados desse equilíbrio eu encaro com satisfação e até um pouco de surpresa: Jamais fui ofendido ou taxado seja pessoalmente, por e-mail ou nas ligações que recebo relativas aos assuntos os quais abordo.

Pode-se dizer que somos moldados a partir de nossos convívios. É aquele amor materno que nos livra do ódio, as risadas com os amigos que nos dizem que ainda vale a pena viver, o cidadão bêbado no balcão a nos mostrar o quanto podemos ser chatos. Através dos exemplos controlamos os estremos. Desde modo, a cada texto que exponho meu ponto de vista sobre a sociedade, nossa política e religião, acabo por reforçar a ideia de que ainda há muita gente disposta a encarar opiniões como a base de fortalecimento que possibilita crescermos.

Outro fator interessante - e essa sim é uma mania minha - é o apaziguar de meus textos geralmente nos dois últimos parágrafos, uso deste artifício para saber se estou sendo lido até o final. Concluo então que essa leitura por inteiro ocorre justamente pelas pessoas não se posicionarem fervorosamente contra minhas opiniões, algo que vejo ocorrer muito com outras pessoas.

Minha abordagem nesse texto seria sobre os extremistas que ‘em nome da fé’ saíram metralhando pessoas em Paris, porém, acabei mudando esse foco justamente enquanto pensava sobre o meio o qual vivo, meio este que me permite a flexibilidade de opinião, um meio onde os poucos extremistas que conheci já nem sei por onde andam.

Resumidamente, sobre o assunto relativo aos terroristas, digo-lhes: Não confundam religião com religiosidade. A religião é algo herdado, algo transpassado pelo meio em que vivemos. Nenhum de nós nasce ateu, crente, católico, islâmico, aprendemos a ser através de um mundo mais material do que espiritual. Já a religiosidade é o contrário, ela nasce com todos nós e quando potencializada é capaz de reconstruir o ser humano voltado para o amor independente da situação a qual se encontre o seu meio.

Eis outro conceito importante para pensarmos. Por muito estamos confundindo a palavra evolução. Já não precisamos nos reunir em volta da fogueira para cozinhar e nos protegermos de animais maiores, porém, não podemos definir facilidades tecnológicas e organizacionais como evolução. Termos uma política como base ou mesmo qualquer tipo de crença não nos torna evoluídos, pois a qualquer momento podemos nos virar uns contra os outros. Não vejo uma real evolução no ser humano dos últimos dez mil anos, e refiro-me a evolução consistente da forma como tratamos o outro. Somos sim, regidos por um conjunto de leis que se abandonadas nos levariam aos primórdios. Não há nada de evolutivo nisso se não a mera imposição.

Voltando ao assunto sobre os que acompanham meus textos quero dizer: Jamais me foi sequer recomendado pelo Serra-Nossa uma abordagem específica sobre um tema, e essa é a parte mais saudável neste espaço que tenho desde o início do jornal. O não compromisso de tema fez de mim - o colunista - ao mesmo tempo criador e criatura, “Humano, Demasiadamente humano”, parafraseando Nietzsche. Eu sou a todo o momento influenciado pelo convívio com vocês.

Assim se inicia outro ano, ao que desejo para os textos que nascerem especificamente a este espaço? Que sejam lidos até o final, perdoados nas diferenças e acima de tudo que façam alguma diferença. Que saibamos crescer ao que parece ser o único paliativo para a doença do extremismo que cerca a humanidade; que saibamos absorver e dialogar com os pingos que nos restam de sobriedade.