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Perco-me entre textos, poesias e músicas, percebi então que a melhor forma de arquivar era dividir. Nesses anos, muito do que não se perdeu foi graças a quem acompanha meu trabalho. Assim, na imensidão virtual deixo essas pegadas, parecem dois únicos pés, mas acreditem, carrego muito de vocês aqui.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Silêncio e asfalto

Colorido, escuro. Colorido, escuro... E assim segue. Meus olhos estão fechados, mas não basta para que a luz que foge entre as frestas da janela não me incomode. Meu ombro direito cansou daquela posição, mas para a esquerda fico de frente a essa janela que parece se movimentar ao ritmo do letreiro instalado a alguns metros do hotel onde estou hospedado. Decido então aceitar o sono que não chega, ligo a TV: nada de suficiente passa nos canais. Sobre a cama ao lado, apenas o violão em seu estojo surrado, ferido e cansado pelos compartimentos de bagagens.

Lembro e penso nas épocas de banda, os dias na estrada. Os quartos de hotéis já foram mais barulhentos, algumas mulheres, algumas bebidas, alguns companheiros de estrada. Saudade? Nada. Passou – como tudo na vida passa – e hoje, saudoso, penso ter durado somente o tempo que deveria.
Lembro e penso – agora um pouco menos – nos meus relacionamentos, em ex-namoradas. Saudade? Certamente! Saudade boa, das diferenças, dos aconchegos e risadas divididas. Volto, então, para o quarto de hotel. A luz do letreiro lá fora segue piscando e me incomodando, assim como me incomodaram antigos relacionamentos. Nesse comparativo, eu aceito aquela luz, a contemplo silenciosamente repetindo em pensamento: um dia você sentirá saudade dessa noite em que a luz lhe rouba o sono.
Bem verdade sei que não é a luz que me impede de dormir, mas os anseios. Às 6h preciso estar de pé, três palestras no mesmo dia para públicos distintos: crianças pela manhã, adolescentes durante a tarde e adultos à noite: Acredite, são os adultos que mais me preocupam. Enfim, tem coisa pior do que precisar dormir e não conseguir? Na vida, tudo que se precisa fazer se torna aflitivo e deixa aquele gosto de precipitado. Imagine-se em um balcão de bar. Um amigo lhe aponta o canto onde está uma garota e lhe diz: “É por aquela que você precisa se apaixonar”. Isso não funciona, nada que se precise funciona, pois tudo de mais mágico na vida independe.
Penso em fumar um cigarro naquele quarto escuro, mas – peraí – eu não fumo. Talvez um gole de uísque... Ah é, eu também não bebo. Sobrou tocar o violão. Mas e se nos quartos ao lado outros estiverem dormindo? Que canalhice esse lance de vícios: os destruidores são silenciosos, os saudáveis atrapalham outros.
Já são 3h. Desço as escadas daquele hotel à beira da estrada. Lá embaixo, além das cores do tal letreiro luminoso, algumas lâmpadas fluorescentes acesas. Fico observando as borboletas por alguns segundos, em seguida meu olhar corre ao longe. Observo os caminhões, todos alinhados, cortinas fechadas. Passo a lembrar do meu avô, que por anos teve como lar as estradas, e dos momentos em que eu o acompanhei, quando pequeno.
Esqueço que estou longe de casa. Eu moro em minhas lembranças, meu principal alimento são os pensamentos. Não me importo mais em não dormir, talvez eu fique acordado até às 6h e apenas dobre a dose de cafeína para aguentar o dia cheio.
Subo ao quarto agraciado pelas lembranças. A solidão sempre foi a minha mais sincera companheira. Deito com o violão sobre mim e, mesmo não podendo tocá-lo, desenho algumas notas com os dedos. Sem perceber, adormeço.
A vida é assim: quando nos livramos das obrigações, nenhuma luz atrapalha e adormecemos tranquilos. Da noite anterior restaram lembranças. Em breve estarei cercado por aqueles de quem gosto e por alguns momentos ficarei em silêncio. Eles não sabem, mas é assim que os agradeço.