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Perco-me entre textos, poesias e músicas, percebi então que a melhor forma de arquivar era dividir. Nesses anos, muito do que não se perdeu foi graças a quem acompanha meu trabalho. Assim, na imensidão virtual deixo essas pegadas, parecem dois únicos pés, mas acreditem, carrego muito de vocês aqui.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Já naveguei em barcos de papel

Recentemente uma empresa de softwares escondeu um prêmio dentro de seus termos de uso para aqueles que desejassem usar seus programas. Entre as cláusulas do contrato virtual uma frase avisava que o primeiro a reclamar um pagamento junto à empresa receberia mil dólares. Foram necessários mais de cinco meses para alguém se pronunciar e receber a grana ‘fácil’.
No metro de Washington, o famoso violinista americano Joshua Bell tocou durante 45 minutos seu violino Stradivarius de 1713, avaliado em US$ 3,5 milhões. Bell, que vestia cala jeans e uma camiseta simples, não despertou a atenção dos milhares que passavam por aí: todos seguiram seus caminhos sem imaginarem que, alguns dias antes, pessoas haviam pago mais de cinco mil dólares para assistirem esse mesmo Joshua Bell.
Paro observar uma garotinha e sua boneca. O brinquedo não é novo, o cabelo cheio de nós e vejo que falta uma parte da perna, mas nada que impeça a garota de saltitar feliz enquanto seus pais observam as vitrines. Questiono-me: Quanto tempo resta à boneca de rosto riscado e membros tortos? Quanto tempo levará para que a garotinha se contamine com a grandeza estapafúrdia desse mundo excêntrico dos adultos?
Ainda contemplamos um belo nascer do sol, um final de tarde de céu anilado, um inverno chuvoso sob as cobertas... Mas é tão passageiro o conforto, dura o espaço de um respirar profundo. Nada dura mais do que segundos e qualquer minuto de contemplação já nos ressoa exageradamente como perda de tempo.
Nos últimos 20 anos, nosso tempo médio em frente a TV passou de 30 minutos para 3 horas por dia. Na internet, a média brasileira é de 5 horas diárias – somos ainda os segundos colocados em acessos a vídeos e redes sociais. Mas espere, e aquela pressa toda no trânsito, aquela frase tão entoada: “não tenho tempo”. Será que realmente não o temos ou apenas usamos o tempo que temos muito mal?

Basta uma caminhada pelo centro das grandes cidades para percebermos que o brinquedo simples já não serve mais. Tornamo-nos arredios a tudo que é de graça, como se o consumo material freasse o consumir de nosso corpo durante os anos. Queremos enganar a vida não parando para conversar com ela.
Não há mais espaço para os acasos. Afinal, o que estaria fazendo um músico conceituado em uma parada de ônibus? Ou um escritor renomado a escrever frases em vitrines de lojas? Por que um pintor famoso iria expor suas telas de graça em uma praça pública? Ou mesmo, por que deixar meu filho brincar com seu brinquedo quebrado se posso comprar uma moto movida a bateria para ele?
Leva anos para aprendermos a cultuar um monte de ferro pesando 800kg que queima petróleo – em outras palavras, um carro. Leva outra década para acreditarmos que, quanto mais alto o andar, mais iremos contemplar a vista da cidade. Levam-se muitas noites mal dormidas para, enfim, crermos que acordar às 7h, tomar um café às pressas e retornar para casa às 19h, exauridos, seja a receita de uma velhice cheia de paz. Dá muito trabalho acreditar em tantas mentiras.
Por isso vivemos cansados: não é pelo dia de trabalho, o trânsito caótico, as férias que parecem tão distantes. O que nos cansa mesmo é não acreditarmos nas mentiras que nos ensinaram a repetir todos os dias. Pois, no fundo, queríamos seguir brincando com as coisas simples, olhar os bobos que contemplam vitrines e rir deles. O que dói é saber que, lá dentro, parte de nós ri do que nos tornamos.